domingo, 2 de janeiro de 2011

CAPÍTULO I

A MORTE DO OUTRO


Passei uma noite estranha, mal dormida, conturbada... E ao despertar deparei-me com um corpo estendido no piso frio do meu quarto. Um homem que seu desfalecimento lembra alguém dormindo. Engraçado suas roupas são parecidas com as minhas, sua pele, seu cabelo. Não, isso não é possível! Quem será?

Penso em fazer alguma coisa, mas cada vez que olho aquilo fico confuso. Vou chamar alguém para ajudar. Não, tem que ser uma pessoa de confiança. Quem? Ah, o Pepe é o único amigo que tenho em quem posso confiar, mas o que vai achar dessa situação? Absurda, mal feita, sem graça...O que vai pensar sobre esse corpo e como irei encará-lo?

- Tive uma idéia! Vamos ensacar o corpo e deixá-lo na porta do IML à noite!

- Por que devo fazer isso, não fui eu que o matei? Aliás não sei nem como veio parar aqui?

- Seu trouxa, como vai explicar para a polícia que esse sujeito que é a sua cara, que diz desconhecer bateu a botas na sua casa?

- Tudo bem! Vamos fazer o seguinte: lá pelas duas horas da manhã deixaremos o carro na garagem próximo ao elevador, assim, dificilmente alguém vai nos ver colocarmos o corpo no carro.

Foi o que fiz, sem pensar nas conseqüências caso o plano desse errado. Com muito cuidado larguei o corpo no corredor que conduz à entrada do necrotério. Em um grande saco de lixo preto e entreaberto, para que, quem o encontrasse percebesse que não se tratava de lixo.

Tentei, insistentemente tentei, mas não consegui pregar o olho e deixar de pensar o que estava acontecendo. Lembro apenas que me excedi na bebida e até um garrafão de vinho trouxe mas não recordo como e que horas cheguei!

Fiz um relatório mental da noite passada, com quem conversei – não converso com muita gente aqui nesse lugar – no trabalho pior ainda... Aquele miserável do chefe da sessão não deixa ir nem ao banheiro sem sua patética supervisão ou dos seus puxa-sacos que denunciam todos que tentam ludibriar seu controle.

A manhã veio lenta e fria como os dias que passam pelas pessoas desse lugar. Todos matam seu tempo com os aparatos tecnológicos que vai de uma simples TV aos componentes ligados a rede de comunicações. Foi isso que fiz, requentei o café e fui para o computador e das horas inúteis que passei o que podemos chamar de produtivo foi levantar as contas que tenho e que não saem, por mais que trabalhe, do vermelho.

Na fábrica, tudo correu como sempre, cobranças, reclamações e um comentário na hora do almoço me deixaram mais intrigado. Foi o Osmar do departamento financeiro contando para o colega que acharam um corpo no corredor do IML e que alguém viu um homem e tem pistas de quem seja o morto. Não comi nada, Resolvi depois do expediente ir ao IML bisbilhotar o que realmente aconteceu.

Às 18 horas em ponto saí do serviço com ameaças do meu chefe que exigia que ficasse para terminar a usinagem das peças solicitada por outro setor. Justifiquei minha saída, pois meu expediente terminava e não poderia naquele dia fazer extras. Não adiantou e o maldito continuou com ameaças de demissão e que o serviço estava atrasado por incompetência minha, etc.

Segui para rua do horizonte e o movimento era grande dentro e fora do IML. Parei em frente onde havia algumas pessoas que conversavam. Na escuta para saber se comentavam sobre o corpo deixado ali, porém o único assunto era sobre o campeonato de futebol, de uma forma mais fanática que realista sobre o resultado e a qualidade dos jogos.

Resolvi falar com uma funcionária - que retornava do café - sobre o corpo encontrado e ela respondeu que notificaram a polícia, mas não tinham nenhuma pista de quem o matou.

Comprei um jornal para disfarçar e sentei num banco próximo aos familiares que procuravam pessoas desaparecidas. Atordoado ao observar pessoas chorando quando saiam do necrotério após identificarem algum ente, desesperadamente procurei uma solução para meu problema...

Percebi que a movimentação de pessoas estava diminuindo e que permaneceram apenas dois funcionários no necrotério, um vigia que dormia na recepção e do qual se ouvia seu ronco do outro lado da rua e um cara imenso de avental branco, com cara de Frankenstein, corpo de mamulengo que conduzia as pessoas para ver os defuntos na geladeira.

Na primeira hora da madrugada aproveitei a soneca do vigia, passando com tranqüilidade pela recepção que dava acesso a um corredor que tinha uma corrente de ar frio que se misturava com o lugar sombrio. Olhei pelo o olho vivo de uma das portas e o funcionário grandão estava compenetrado preenchendo fichas, próximo à porta. Meu coração disparava querendo sair pela boca. Na sala, mesas de alumínio com corpos nus feridos a bala, enfeitavam a sala, outros com cabeça e tórax esmagado, talvez por acidente de carro. Pensei que coisa maluca e bestial um homem procurar alguém que desconhece na preocupação de resgatá-lo para se aliviar dos possíveis problemas de natureza psicológica. No fundo da sala uma parede com imensas gavetas e mais uma série de mesas com pessoas quase empilhadas umas sobre as outras – dava a impressão que aguardavam vaga nas gavetas.

Entre a segunda e a terceira fileira estava ele, branco como uma vela em cujo semblante desenhava a expressão de quem queria dizer: Sabia que iria encontrá-lo novamente! Você não me deixaria na mão!

Com um avental embrulhei e com certa facilidade levei o corpo para casa. Lá estava eu e um corpo estendido no sofá.

Que situação bizarra! Sem uma explicação racional tentei dormir e por sorte o cansaço venceu. Rápido um sonho colorido veio – costumo acreditar que os sonhos coloridos são mais reais, e os em preto e branco, sei lá...

Talvez sejam novos recursos neurológicos -, mostrando a mobília velha que tinha, de repente lá estava sentado no sofá, olhando ironicamente para mim. Gritei:

- Quem é você? Por que está fazendo isso?

Ele respondeu risonhamente:

- Deveria fazer essa pergunta a você mesmo? Já é tempo de repensar quem é, o que faz?

- Quem é você para medir meus atos e como vivo? Responda o que lhe perguntei, imbecil!

- Abri a janela(1)

Vi o mundo

Não me enxerguei.

Tentei com os olhos

Mesclar o azul

Avancei no céu, anoiteceu.

Viajei entre as estrelas, viajei...

“ O vazio é tão completo

No vazio não há fronteiras, fui além...”.

O impossível existe?

Fechei os olhos

Mesclei o preto, [ sonhei ].

Encontrei um homem

Escrevia? Desenhava?

Perguntei quem era?

O que fazia?

Disse-me: V O C Ê.

- Isso é sua resposta? Um poema? Uma metáfora?

- Não gosta de poemas pacato cidadão?

- Para que serve e o que ganho com isso?

- Deveria perceber mais as coisas que estão ao seu redor, pacato cidadão! Sentir, conversar com as pessoas, ler bons livros, poesias...namorar, trepar, viver... pensar!!!

- Pelo amor de Deus quem é você?

- Agora acredita em Deus? Antes questionava tudo, hoje pertence a uma religião que não permite pensar e agir a favor do próximo...Preocupou-se em saber se eu estava vivo, se tinha pulso ou meu coração batia? Sua preocupação é apenas de se desfazer do corpo sem deixar provas, vestígios... Depois de um porre que tomou, não se lembra nem como e com quem veio para seu apartamento? Aliás quem está vivo ou morto, pacato cidadão? Eu ou você? Quem sou eu? É isso que quer saber? Eu queria ser poeta, filho do mundo, não como aqueles como tu que habitas a insensatez e cultuas a ambigüidade do ser e ter. Deves estar a questionar minha ousadia, porém não é tão simples entender que a imortalidade do homem está nos seus feitos e nas sutis formas de expressão.

- Estou perguntando a alguém que virou minha vida de cabeça para baixo e a única coisa hábil que faz é falar bonitas palavras cheias de perguntas.

- Tudo bem, - vamos com calma! Conhece a história dos homens que habitavam uma caverna e por não terem outro contato com a realidade senão as sombras moventes, não admitem a existência de outros seres além destes. Ocorre que um dos homens se liberta e busca o mundo verdadeiro(2). Em lados opostos, um homem desses , sou eu, o outro é você.

- Leia, tens o livro naquele armário que há muito tempo não abre. Até mais ver, pacato cidadão!

- Como ele sabe que tenho este livro? Como ele pode saber? Como???

Acordo encharcado de suor, cansado, mais que antes de dormir. Cadê ele? Esta aqui então o pesadelo não terminou! Como é possível isso?

No sonho ele disse para ler a história dos homens na caverna que esta no armário velho. Desgraçado como ele pode saber disso?

Abro o armário e vasculho, todos esses livros empoeirados que lera, mas me esqueci...Já era tempo de rever. Aqui está, por que ele quer que eu leia isso? O que tem a ver comigo?

Nem tinha notado que ainda era madrugada e comecei a ler com empolgação aquela história de homens que viviam numa caverna, desconhecendo pela sua ignorância o mundo lá fora...Quem ele pensa que é? O filósofo que vem dar as boas novas e mostrar a verdade para aqueles que vivem nas sombras? E que eu sou? Um ser ignóbil que vive na ignorância, no submundo? Filho da mãe! Vou acabar com isso agora, enterrar essa história de uma vez por todas. É isso! Atrás do prédio tem um terreno baldio, vou enterrar esse miserável e acabar com esse pesadelo.

Os passarinhos começaram a cantar e numa cova mal feita por uma pá de lixo rente ao muro do prédio, enterrei aquele corpo que parecia mais uma cruz amarrada em minhas costas.

O dia veio, justamente na hora que cochilava com o livro sobre as mãos, as roupas sujas daquela terra avermelhada e um mal estar, misturado com mesmo peso na consciência que me fez resgatar o individuo no IML.

Resolvi não ir trabalhar, também um serviço que nem esse como dizia aquela professora maluca que conheci: “Muito trampo, horário rígido, pouca grana, tô fora”!

Fui na praça em frente ao prédio onde moro, pensando em tudo que estava acontecendo e na vida agitada de uma cidade que faz a gente se sentir na inatividade de conhecer os vizinhos e freqüentadores desta peculiar praça: Camelôs, crianças e playground, idosos descansando nos bancos a espera da vida ou da morte, pombos a arrulhar nas pequenas e poucas árvores, e os incontáveis carros incomodados com a impossível calma que teria se não tivessem inventado a roda.

Esta é a primeira vez que assento a este banco na maior e insustentável procura de mim mesmo, talvez se as finanças não tivessem me corrompido, evitaria a traição às pessoas de boa fé, se não tivesse a obrigação de querer àquela linda mulher seríamos até hoje felizes... E se as paixões avarentas misturadas com o convívio e a volúpia da elite não me consumissem... Maldito sujeito que apareceu na minha vida e fez com que tenha esses estranhos pensamentos.

O FALSO ESPELHO

V

oltei para aquela kitchinette que chamo de apartamento, parece mais uma caverna, os móveis de segunda que divide a sala, a cozinha e o quarto. Tudo virado e todos os lugares parecem que lembram dele.

Antes de terminar o dia recebi um telefonema da empresa que trabalhava, era o carrasco do meu chefe exigindo justificativa para minha falta. Fui sincero ao lhe dizer que estava com mal-estar. Não adiantou, o cara me xingou de todo nome, falando que isso não é motivo de falta, e deu um ultimato: Se não estiver amanhã no serviço pode procurar outro emprego, ouviu, seu vagabundo?

Estava anestesiado com tanta coisa. Quis desabafar com alguém e pensei que a Maria poderia me ajudar. Se ligar para ela depois de tudo que fiz será que me perdoa? Não custa tentar, o que é um “peido para quem está cagado”?

- Alô, Maria sou eu, tudo bem?

- Tudo e você?

- Estou na pior, preciso de alguns conselhos, quero ajuda senão vou enlouquecer!

- Por isso você ligou, somente quando precisa?

- Desculpe, não liguei antes porque estava com peso na consciência. Posso ir aí, ou encontrá-la em algum lugar?

- É melhor ficar do jeito que está, eu aqui e você distante. Ainda não esqueci o que fez, estou bronqueada, não leve a mal, outro dia quem sabe podemos conversar melhor?

- Tá bom , tchau.

Não disse? Mais uma noite com esse fantasma na minha cabeça, sozinho.Vou abrir o garrafão de vinho, beber pra esquecer, aliás, foi com a cara cheia que tudo isso começou, talvez termine de vez...

Fiquei bebendo e relendo aquela história dos homens da caverna, meu cotidiano, e o das pessoas que vegetam sem saber os reais motivos de tantas dificuldades, violências, manipulações...Caracas, não é que o carinha tinha razão?

Ligo o som e uma música - de Chico Buarque (3)- que programei não sei quando, toca:

(...)É sempre bom lembrar/ Que o copo vazio está cheio de ar/ Que o ar ocupa no copo ocupa o lugar do vinho/ Que o vinho busca ocupar o lugar da dor/ Que a dor ocupa a metade da verdadeira natureza interior/ Uma metade cheia/ Uma metade vazia/ Uma metade tristeza/ Uma metade alegria/ A magia da verdade inteira todo poderoso amor/ A magia da verdade inteira todo poderoso amor/ É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar...

Bêbado, revoltado e sem medir novamente as conseqüências desenterrei o poeta e levei para a minha caverna. Coloquei no mesmo lugar que ontem e ao tirar o lençol do seu corpo continuava com aquele semblante que me assustava, somente dessa forma, dei conta do que tinha feito mais uma vez.

- Fala comigo, poeta?

De repente seus olhos e sua boca se abrem simultaneamente:

Com o relógio à vista(4)

Corre feito louco

Atropelando camelôs e bugigangas

Correm entre os carros, prédios, lotações, corre...

Pra pagar as contas, pra poder comer, vestir o filho, pra esquecer Maria que cobra todo dia um pouco de atenção para o seu tesão...

Sem perceber que sua vida parada como pedra no caminho a espera de algum tropeço o desperte.

Xingando ter culpa os pais dos filhos da puta do atraso de sua partida

Zé quer ter promoção ao chegar no trabalho onde o patrão de sentinela e com relógio a prazo te dará o troco.

Zés destes tempos

Não sente que já é tempo

Tempo de viver enquanto a vida escorre pelos dedos

Decodificando seu submundo.

Tempo senhor das Eras

Tempo senhor dos tempos

Homem escravo do tempo

Homem escravo do homem

Escravo do escravo.

- É por isso que te batizo com nome de poeta! Não responde diretamente nada que pergunto, nem o próprio nome. Ficas Floriano as palavras de forma enigmática. Como você é estranho!

- Eu também acho o mesmo de você, Zé Ninguém!

- Poderia me dizer por quê? Até parece que saiu de um conto de Franz Kafka, vives de forma obscura, aparece somente em lugares isolados como um bicho, um ínseto prestes a assombrar e causar asco às pessoas(5)... Zé Ninguém? Fique sabendo que não sou nenhum vagabundo, trabalho, pago minhas contas, mas o que chamo de trabalho o poeta chama de escravidão, palavras e mais palavras...

- Qua qua ra qua qua eu vi, qua qua ra qua qua fui eu... Suas provocações têm fundamento, concordo com você. Não aprecia poesia mas é um poeta nato, vive acreditando naquilo que não existe. No seu serviço é um tremendo pelego e tem a capacidade de ser odiado pelo patrão que o explora e por todos os trabalhadores que buscam seu apoio nas reivindicações e você Zé Ninguém só dá pra trás... Lembrou bem, viver de forma insignificante, como um inseto.

- Nisso o poeta tem razão, não consegui me adaptar a nenhuma relação social até o momento. Deve também entender que não quero ser massa de manobra, nem a líderes de trabalhadores que procuram falaciosamente sua ascensão e domínio sobre os demais, nem ao capital que prega progresso, acumulação e alienação...

- O que é alienação para você Zé? Chamei-o a pouco de Ninguém (6) justamente por viver distante de tudo e manipulado por todos...

- Como a descrição dos homens na caverna, vivemos nesta paranóia, fazendo do mundo nosso umbigo e envolta essa merda toda.Mas como reverter essa situação, hein poeta?

- Construindo uma nova forma de resistência, uma nova consciência que liberte, um a um dessa dominação. Não é fácil, sem dúvidas, produzimos essa desconstrução desde os primórdios da civilização, para derrubá-la é necessário paciência, capacidade e oportunidade.

- Não consigo mudar nem a minha vida, veja lá uma nação!

- Não haverá efetivamente revolução no mundo se os homens que lutam para que ela aconteça não começarem a realizá-la primeiro dentro de si mesmos.

- Como assim, poeta?

- O que adianta transformar a sociedade se os homens continuarem medíocres e individualistas. Não foi isso que aconteceu no Leste Europeu? Veja você, insatisfeito com sua vidinha, porém se resigna quando alguém questiona seus atos e sua forma de conceber o mundo?

- E o poeta figura obscura, seu nome, sua vida, tudo é desconhecido. Fala de revolucionar o mundo, as pessoas e se esconde...Não passa de um idiota igual a todos que enche a boca para criticar, desmerecer.

- Estás na pista certa, sou igual a todos, principalmente nossa semelhança não é por acaso. Desmerecer, fingir afeição e fazer indiferenças é o mal que se arrasta há séculos enquanto os sentimentos são represados e trocados pelo fetiche e posses. Não foi por um desses motivos que usou os sentimentos de Maria, Zé Ninguém?

- Vai cuidar dá sua vida! Vida, nem isso você tem, esqueceu que é um fantasma, que estava entre os mortos no necrotério e o desenterrei as poucas horas, múmia sem tumba.

- Por que chegastes a conclusão de que estou morto? Nasci de você zigoto(7)! E por isso resolve abrir e fechar nossa cova. Quer enterrar o passado e viver como um morto. Eu sou seu espelho por fora, mas por dentro a existência que insiste em renascer dessa discórdia que é sua vida. “Toda consciência visa à morte da outra”,disse Goethe. Tomas consciência e viverei com mais vigor em você e o morto-vivo de sua atual consciência alienada deixará de existir.

- Esse falso espelho da realidade que máscara a natureza humana. Perceba que até agora tudo que conversamos faz parte da sua imaginação, da sua paranóia esquizofrênica. Está conversando com o espelho que tens aqui na tua caverna ou esta ficando louco Narciso.

- Devo estar louco! Não entendo que isso é fruto da minha cabeça. Poeta, tu és um demônio!

Os dois se olharam por alguns instantes como que trocassem insultos ou procuravam um entendimento comum. Passava das 6 da manhã e o Zé sem pregar o olho resolveu encarar a realidade, a fábrica estava a sua espera...

Ao observar por um último instante o espelho e os espaços que ocuparam nas polêmicas conversas, percebeu que os ângulos refletiam as diferentes situações com o poeta. Ele por sua vez, notando que a charada estava descoberta deu uma horripilante e prolongada gargalhada forçando o Zé de forma desesperada a sair em disparada atropelando tudo que estava em seu caminho...

O RETORNO DO SER...

Às vezes me sinto(8)

Largado no mar

Procurando nas ruas ou em qualquer lugar...

Você, o verbo amar!

Você, não quer deixar...

Mas sempre um dedo aponta no ar...

Ditando caminhos

Para largar

Você, o verbo amar!

Você, não quer deixar...

Pingo d’água na moleira

Quase o dia, noite inteira.

É preciso mais...

É preciso muito mais...

Para poder acabar com o mal que tanto se faz.

C

omo um alucinado, vaguei, corri, cansei... Assustados os transeuntes, mais que eu... Sem notar caminham inconscientemente para o trabalho. Assim caminha a humanidade, homem escravo do tempo, homem escravo do homem... Passo em frente à fábrica, um tumulto, uma aglomeração de trabalhadores com palavras de ordens ecoa pelo quarteirão. Aproximo-se para ouvir melhor, Lucios encima de um caminhão esclarece e denúncia à situação:

- Trabalhadores substituídos por máquinas, antes exploravam sua força braçal ( como máquinas ), agora que uniram capital–trabalho às inovações tecnológicas reduziram os postos de trabalho. Somos mas uma vez trocados e deixados abandonados à miséria absoluta das rações que continuam chamando de salário – para aqueles que tiverem com a maldita sorte de continuar sendo explorado. Essa dinâmica intempestiva de incapacitar aqueles que consomem e precisam produzir gera o caos... Devemos exigir reparações, melhores condições de trabalho e que os salários atrasados e as horas excedidas sejam pagas. Caso contrário, pediremos aos sindicatos envolvidos uma solução provisória até que nossas reivindicações sejam atendidas.

Nesse momento que todos aguardam o consenso... Levanto os braços e a voz, lanço uma nova proposta:

- Lucios, trabalhadores, nunca propus e não fiz nada talvez porque também não entendia nem a parte que me cabia. Veja lá o todo que determina nossa miserável situação. Acredito que devemos reivindicar e fazer o movimento que constrói a luta, mas não é de forma reformista ou tímida que conseguiremos mostrar a nossa importância e força. Exijamos condições e salários justos e sem atrasos, caso contrário a greve e a tomada da fábrica deve ser imediata até nossas reivindicações serem efetivamente realizadas, PORQUE O MOVIMENTO FAZ A LUTA E A LUTA FAZ O MOVIMENTO!

Nesse momento a multidão de trabalhadores manifestou-se como a frase de apoio: O MOVIMENTO FAZ A LUTA E A LUTA FAZ O MOVIMENTO.

O chefe do meu setor que estava na porta da fábrica com alguns policiais, grita:

- Zé, Zé, sempre demos apoio e condições para vocês crescerem com a empresa! Chame os trabalhadores para o trabalho agora ou serão todos demitidos. Zé, esqueça isso que não vai se arrepender!

O batalhão da polícia em prontidão aproxima-se da multidão batendo seus cassetetes nos escudos de proteção.

Lucios em desespero pergunta o que iremos fazer e proponho aos trabalhadores:

- Tomemos a fábrica porque com a polícia não tem negociação!

O tumulto se fez e antes que os trabalhadores entrassem na fábrica o confronto com a polícia já fazia vítimas. Apanhamos mais que batemos, a organização não se fez, mais todos os trabalhadores perceberam sua força, perseguidos por vários quarteirões, escapamos.

Ao chegar em casa fui direto para o banho lavar o sangue que ensopava a cabeça. Não pensei nas conseqüências, porém, satisfeito como nunca senti ter cumprido meu dever, não que devesse algo para os trabalhadores, mas a mim mesmo.

A companhia tocou, ao observar pelo olho vivo da porta, policiais de campana aguardavam. Fiquei preocupado com o corpo do poeta e ter a acusação não mais de causar tumulto mais de matar uma pessoa. Não o encontrei em nenhum canto do cubículo. Pulei a janela e fugi...

Madrugada retornei, a casa estava virada, mexeram em tudo a procura de quê?

Escutei um assobio, era o poeta.

- Na frase do tempo os homens se inserem como vírgulas, enquanto que, para detê-la, tu te imobilizaste como um ponto, escreveu E.M. Cioran.

- Seus insultos me irritam, mas temos uma imensa capacidade de adaptação.

- Zé fugiu da polícia ou de si mesmo?

- Dos dois, poeta, dos dois. Fiquei receoso que iriam encontrar seu corpo.

- Já deixei claro que minha imagem é a sua semelhança e que vivo no definho daquele que vive escondendo-se nas cavernas a debruçar-se nos espelhos da ignorância...

De hoje em diante...(9)

Não trairei mais as leis e ordens cidadãs

Não encherei a cara de cachaça

Embriagando os ambientes de dizeres obscenos.

Ficarei sereno

Com a sensatez dos tolos

Porque você merece estar tranqüilo aceitando o destino traçado por Deus.

Estarás incólume como uma barata num cubículo escuro

A espera do próximo cortejo que o levara direto para o céu...

Sete palmos abaixo da terra.

- Espera que eu diga, assim seja, né poeta, mas está enganado. Despeço-me de você, mesmo te vendo todo momento que encontro um espelho. É bom para lembrar que devo ficar sempre atento, porque o conformismo é a esperteza dos tolos.

- Não se esqueça companheiro há muito que fazer, espero não voltar. É melhor você ficar alguns dias na casa de algum conhecido, até as coisas se resolverem... Não se esqueça de quem te ama e daqueles que precisam até mesmo de suas provocações, até mais...

- Mariaaaaaah!

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NOTA:

(1)- Poema “Da janela para o mundo” do livro Dialéticas: Reflexões poéticas;Sandro Cardoso dos Santos.

(2)- Diálogo entre o filosofo Sócrates com Glauco, descrito por seu discípulo Platão no “ Mito da Caverna”.

(3- Copo Vazio; Música de Gilberto Gil/Chico Buarque.

(4)- Poema “Escravo” do livro Dialéticas:Reflexões poéticas;Sandro C. dos Santos.

(5)- A história de um homem que acorda de um pesadelo e descobre que está metamorfoseado em barata. Metamorforse;Franz Kafka.

(6)- Citação da obra de William Reich, Escuta Zé Ninguém.

(7)- Alice Teixeira Ferreira, médica, é professora livre-docente de biofísica, contra a descriminalização do aborto afirma que o corpo é composto por células, o que leva à compreensão de que o embrião se forma a partir de uma única célula, o zigoto, que, por meio de muitas divisões celulares, forma os tecidos de muitas divisões celulares, forma os tecidos e órgãos de todo ser vivo.”O embrião com menos de 14 dias não tem consciência porque não tem tecido neural”. Mas esse argumento decorre apenas e tão-somente da separação entre mente/alma e corpo operada pela filosofia cartesiana.

(8)- Poema “ Pingo d’água”do livro Dialéticas:Reflexões poéticas;Sandro C. dos Santos.

(9)- Poema “Procissão” do livro Dialéticas:Reflexões poéticas;Sandro C. dos Santos.

obs: Esses e outros poemas deste livro podem ser vistos acessando o blog http://dialeticass.blogspot.com